terça-feira, 28 de agosto de 2012

A terceira tomada de poder pelos comunistas em Natal


Recebi hoje, por e-mail, texto do amigo, ex-presidente da Casa do Estudante do Rio Grande do Norte, Emanuel Grilo. Em conversas recentes pensamos em escrever algumas crônicas sobre nossa passagem pela CERN. Publico abaixo o texto recebido:



A terceira tomada de poder pelos comunistas em Natal


Por Emanuel Grilo.

Cheguei à Casa do Estudante do Rio Grande do Norte na manhã chuvosa do dia 06 de março de 2001 com uma mochila nas costas e uma caixa contendo alguns livros e uma rede.
A sujeira que imperava, sobretudo nos banheiros que não deviam ser limpos há no mínimo um mês, somada à escassez de pessoas, dava uma impressão de abandono, o que não era de todo ruim, uma vez que em mim suscitou a esperança de que, uma vez iniciadas as atividades letivas na rede pública, naquele ano atrasadíssimas, os moradores do prédio retornariam à instituição e dariam vida à mesma, amenizando aquele clima pesado que o antigo Batalhão de Caçadores preserva até hoje.
Enquanto aguardava alguém da direção da instituição me encaminhar para algum dos aposentos fiquei a imaginar a batalha da qual a Casa foi palco, narrada por Jorge Amado em seu Seara Vermelha.
Naquele prédio se deu o mais feroz tiroteio do levante de 1935, que culminou com a tomada do poder pelos comunistas durante três dias na capital potiguar.
Fato marcado pela histórica foto da fachada do prédio todo crivado de balas.
O escritor baiano narra que quando o protagonista da trama foi socorrido após baleado, abriu os olhos enquanto era conduzido numa maca e viu a bandeira com a foice e o marte tremular na frente daquele prédio.
Uma charge afixada no mural, na qual aparecia um boneco usando óculos segurando uma faca numa mão e na outra o colarinho doutro sujeito que o olhava com cara de medo, me chamou atenção. Havia uma seta apontando para o agressor e o nome “Miltão” grafado com caneta vermelha.
O responsável pela Casa apareceu e não fez a mínima questão de ser gentil comigo. Disse, quase gritando, que eu fosse embora, mas se amansou quando lhe ofereci vinte reais.
Desprovido de quase metade do dinheiro que tinha para me alimentar no restante do mês, fui encaminhado a passar a noite num dos porões da Casa e quando o cara que me recebeu no quarto se apresentou, confesso que tremi de medo: “Meu nome é Miltão e sou de Pacajus do Ceará”, disse me estendendo a mão.
Minutos depois notei que não havia sentido para medo, pois Miltão, só era brabo na charge do mural. Demonstrou ser um sujeito deveras gente boa, e essa primeira impressão se confirmou durante todo o período em que ele morou por lá.
No dia seguinte fui informado que passaria a morar num quarto só de “feras”, como eram chamados os novatos na Casa.
Aqui se faz pertinente abrir um parênteses sobre o dialeto interno da instituição no que se atine aos “feras”. Todo tipo de burrada era taxada de “ferança”. Quando alguém demonstrava possuir, digamos, qualidades equinas, no que se refere às habilidades intelectuais, era “xingado” de fera.
Pois bem, fui morar num quarto com mais três feras, e lá passei os primeiros meses, até me mudar pro quarto 17, a convite de meu saudoso amigo Anderson de Areia Branca, falecido precocemente num acidente de trânsito.
Eram tempos difíceis na Casa. Às 18h a sirene tocava, e no refeitório era entregue um pacote de carne moída e um saco de leite liquido, ambos congelados, e embora o regimento interno proibisse ter fogões nos quartos, era nesses recintos que os alimentos eram preparados. Fazíamos uma cotinha pra comprar pão e café, e essa foi nossa janta durante um ano e poucos meses.
A comida era exígua, a higiene precária e o dia a dia difícil. Começamos a organizar um movimento oposicionista interno. Toda articulação tinha que ser secreta, pois qualquer sócio poderia ser expulso ao alvedrio dos diretores.
Nos sentíamos como um movimento cladestino em época de ditadura, sentimento reforçado pela etérea presença de Emmanuel Bezerra, presidente daquela instituição morto covardemente sob tortura em 1973.
Nosso movimento ganhou corpo e um ano, seis meses e cinco dias após minha chegada à Casa do Estudante do Rio Grande do Norte, no dia 11 de setembro de 2002, o boato de que o então presidente iria renunciar, nos motivou a convocar uma assembleia geral, na qual foi eleita uma junta governativa provisória, composta, salvo engano, por Anderson de Areia Branca, Guto, Anaximandro (de quem não lembro a origem), Erasmo de Portalegre, Josimar de Macau e eu. Com a renúncia ulterior de alguns membros, a junta passou a ser composta pelo competente Maurício Neto, de Touros.
A assembleia supracitada teve início às 22h daquele 11 de setembro e somente terminou as três e pouco da manhã do dia seguinte.
O primeiro ato de nossa gestão interina foi baixar a portaria de destituição de toda a diretoria da entidade.
A Casa acordou no dia 12 com café da manhã, o que até a véspera era privilégio só dos membros da direção e de seus comparsas. Mas o que realmente havia mudado era o clima, pois agora havia esperança de uma melhoria imediata nas vidas dos sócios.
Naquela época, ainda empolgado pelo marxismo-leninismo, costumava dizer que aquela era a terceira vez que os comunistas tomavam o poder naquele prédio: a primeira em 1935 e a segunda com Emmanuel Bezerra, na década de setenta.
Tomamos o “poder”, costumava brincar, e nem foi preciso disparar nenhum tiro.

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